João Vasconcelos, o fundador do Canal180, um canal de televisão que é também onde se estabelecem ligações entre artistas e pensadores, músicos e ativistas. Tudo isto com o trabalho criativo e coeso de uma equipa pequena cuja escala se escolhe manter.

(Marta Pinto) – Olá, este é o podcast do Culture Code, eu sou a Marta.
(Luis Simões) –  E eu sou o Luis, e ambos fazemos parte da LemonWorks, onde ajudamos empresas a criar um ambiente de trabalho com propósito e significado.

(Marta) Hoje juntamos à conversa o João Vasconcelos. É um não-conformista, optimista, apaixonado. É também o fundador do Canal180, um canal de televisão que é muito mais do que apenas um canal de televisão. É onde se estabelecem ligações entre artistas e pensadores, músicos e ativistas, e o canal onde se tenta encontrar as questões centrais da sociedade e oferecer um ponto de vista claro e alternativo. Tudo isto com uma equipa de cerca de 10 pessoas, ou seja, de 10 criativos.

(João Vasconcelos) … só aqui um à parte. Depois podem cortar.

(Luis) Já sabes que não vamos cortar não é, se estás a dizer isso.

(risos)

(João) Pelo menos no sumário já vai entrar.

(risos)

(Marta) João, muito obrigada por ter teres disponibilizado a ver o podcast do Culture Code, e desvendar um bocadinho do que é a cultura de trabalho do Canal180. Estamos curiosos. É um canal de televisão, de arte e criatividade. E então muito obrigada por isso.

(João) Obrigado pelo convite.

(Marta) João, nós gostamos de perguntas simples e respostas também simples, para que todos consigamos entender. Então, vamos começar por te perguntar como é que tu explicarias a um miúdo de 10 anos o que é que é o teu trabalho no Canal180.

(João) De facto há uma parte que é bastante simples, que é…para um miúdo de 10 anos é uma coisa do tempo dos avós dele, que é a televisão como era feita no século XX. Uma pessoa ligava e tinha que ver o programa que estava a dar, que alguém decidiu que aquela hora tinha que estar a passar. E foi isso que nós fizemos há 10 anos atrás, também quando o meu filho nasceu e que agora tem pouco mais de 10 anos. E era isso. De facto tem aqui um lado de provocação. Porque de facto há um declínio da televisão e do consumo da televisão linear, porque há outras opções mais interessantes hoje em dia para vermos os conteúdos quando nos apetece, onde nos apetece. Mas há um lado de provocação, sobretudo para a área da cultura e das artes, de poder dar acesso a uma plataforma muito tradicional e que tem um certo reconhecimento apesar de tudo, e trazer uma cultura mais independente, mais alternativa para essa plataforma mainstream e com um alcance de audiências também maior.

(Marta) Ok, mas já dá para voltar para trás na box não já? No Canal180 também?

(risos)

(João) Tem isso. E na verdade inicialmente foi muito giro pensar neste projeto, porque no fundo foi pensado só há 10 anos, no fundo já estávamos no século XXI, com algum andamento. De facto tem esta dimensão, deste lado de provocação, mas que também tinha alguma tentativa de inovação. Ou seja, nós assumimos e reconhecemos claramente como é que hoje as pessoas gostam de ver conteúdos, sobretudo também o nosso tipo de público que é mais novo, que no fundo também valoriza essa flexibilidade. A ideia até começou por programar apenas duas horas de televisão: só o prime time, e tudo o resto pode ser on demand. Depois as coisas evoluíram, várias coisas evoluíram porque trabalhamos com redes relativamente grandes de criadores, instituições, etc. Mas pronto, isso é uma conversa mais longa.

(Luis) E como é que o teu caminho se cruzou com esta ideia disruptiva, independente como tu dizes, de desafiar ainda para mais os canais de televisão que são assim um poder tão instaurado? Como é que surgiu isso? E como é que tu hoje em dia liderar uma equipa que provavelmente tem valências muito diferentes. Como é que isso aconteceu?

(João) A forma como colocas a pergunta é interessante na verdade. Eu estudei economia, e gostava sobretudo da parte de macroeconomia, do lado do desenvolvimento dos países, das economias nacionais, do mundo etc. Mas quando comecei a trabalhar, comecei a trabalhar na Sonae. Queria trabalhar na área até de ponta, tipo a internet, o Clix…mas tive uma primeira entrevista e disseram ‘Não, não. Clix, isso é um negócio muito pequenino. Tens de ir para as telecomunicações que é um negócio muito maior e muito mais interessante, muito mais potente. ‘E eu lá fui para a Optimus na altura, e foi uma experiência incrível, mas depois senti realmente uma estrutura…uma telecom normalmente são empresas muito grandes e eu senti uma certa vontade de ir para uma escala menor. E na verdade tenho feito isso. Provavelmente uma Optimus, uma empresa de telecomunicação tem 1000 pessoas, depois passei para uma de 100 que era uma agência de publicidade em Lisboa, e depois para uma de 10 , 12, 15 pessoas que é o Canal 180. Há de certa maneira aqui algo que vai ligando alguns pontos que é as telecomunicações, a televisão, a comunicação, a publicidade, os media. Tudo isso se relaciona. Os pontos vão-se ligando, mas realmente não havia aqui um plano. Não havia minimamente um plano.

(Luis) Como é que foi esse passo de uma empresa muito grande para empresas mais pequenas, até ao ponto em que agora és tu que tiveste quase um papel principal em criar a cultura dentro da organização? Como é que sentiste isso, ou foi acontecendo, foi uma coisa que te apercebeste? Como é que isso surgiu? 

(João) Ao vir de uma estrutura maior, acho que quando uma pessoa sente a uma certa altura da vida vontade de ter um projeto próprio, acho que tudo o resto….claro, pode depender um pouco das pessoas. Eu tenho um lado provavelmente mais idílico, mais romântico de se trabalhar por paixão, pelas coisas que gostamos, em que acreditamos, e portanto decido dar esse passo. E eu acho que ao fazer as coisas as pessoas vão surgindo, as pessoas que se revêem nos projetos, e que têm determinadas competências. E acima de tudo eu valorizo a diversidade de competências, a diversidade de perfis e isso claramente é que torna uma organização capaz de fazer o que nós individualmente não fazemos, não seria possível fazer. Não tenho uma vertente operacional tão forte, e por isso o meu sócio que também fundou o Canal 180, o Nuno Alves, é que tem sendo ele engenheiro, programador e muito habituado a construir equipas…tem uma visão, se vocês quiserem, muito mais competente, ou tem muito mais essa competência. Mas existem sempre esses dois fatores. Um perceber funcionalmente em termos de função como é que encaixa, como é que se organiza o processo produtivo. E depois outra componente muito mais afetiva e de como é que fazemos as pessoas darem o seu melhor, e complementarem-se e ajudarem-se. E de facto a experiência do Canal180 tem muito disso, porque no fundo era…hoje em dia está na moda dizer, a folha em branco…mas o Canal180 tinha muito em aberto como é que se podia construir. E portanto, uma das coisas para mim mais bonitas do projeto foi isso, foi também ser a abertura que há às pessoas a acrescentarem e a trazerem a sua qualidade, o seu mundo, a sua visão ao projeto. Isto para além dos aspectos mais funcionais, empresariais e de gestão puramente dita.

(Marta) Estavas a falar que as pessoas certas vêm ter aos projetos certos, não é? As pessoas procuram também envolver-se em projetos com os quais se identificam. E o Canal 180 continua a crescer?

(João) Acho que sim, repara….depende dos projetos. Obviamente houve uma equipa nuclear que foi construída e que foi fundamental para conseguirmos fazê-lo, e aí sim muito pensada e tudo o resto estava muito pensado no papel, mas depois no executar é que eu acho que depois faz muita diferença, e que vai definir o que é a tua organização. E nesse sentido, o 180 tem esse lado mais orgânico. 

Marta, acho que não respondi à tua pergunta, podes repetir?

(risos)

(Marta) Respondeste, respondeste. Está a crescer, está a crescer o Canal 180…

(risos)

(João) Ah! Está a crescer! Nós lançamos o canal… o Canal180 foi lançado em plena crise da Troika (a crise anterior), agora não sei se estamos numa parecida, espero que não. Mas foi lançada na ressaca de uma crise, e com um total…como é que hei de dizer…não é alucinação minha (risos), mas foi completamente descolado da realidade. Mas havia um sentido de uma urgência e de uma necessidade de fazer coisas, e de um reconhecimento que socialmente existe a capacidade para fazer uma coisa boa, nestas áreas. No fundo de trazer novos artistas, artistas emergentes e dar-lhes um espaço. Era de tal forma a minha convicção nesse sentido, que tinha que ser feito e tinha que haver maneira de ser feito. Esse primeiro avanço acaba por ser um ato que define muita coisa à volta, e os constrangimentos. E a partir de certa altura o meu foco não foi tanto num crescimento, mas é como equipa, mas também de encontrar um modelo de sustentabilidade. E o modelo de sustentabilidade tem a ver com complementar o projeto editorial, com uma componente de produção comercial que permite equilibrar os dois mundos. E que no fundo tentava ao máximo que esses mundos se tocassem. Dou-vos um exemplo. Os festivais de música. O Canal180 tem um conhecimento e trabalha muito com os músicos como artistas, mas depois também trabalha com a organização de grandes festivais de música nacionais e internacionais. E isso torna-se um trabalho diferente, porque não é a nossa iniciativa editorial, torna-se um trabalho para um cliente muitas vezes, e às vezes até o patrocinador desses festivais de música. Mas foi encontrar essa sustentabilidade, e manter esta tensão também fez com que achássemos que a dimensão de uma equipa de 12 pessoas, muitas vezes mesmo nas equipas de engenharia, etc, andar ali à volta das 10 pessoas, um bocadinho para baixo ou para cima…acaba por ser como nós conseguimos funcionar como um organismo, que consegue e forma relativamente informal, coordenar-se. Porque o preço de escalar implica compartimentar, criar departamentos e depois criar também compromissos de faturação, de rentabilidade, etc. E o lado idílico do canal 180 acaba por ser muitas vezes pouco compatível com esse escalar. Se escalar para ter duas equipas, uma comercial e uma editorial, não é claro o que é que depois cada uma paga e qual é a dinâmica de crescimento de cada uma no sentido mais profissional, da qualidade, da inovação que podemos pôr nos nossos produtos, no nosso serviço.

(Luis) Acho que é fantástico partilhares isso, porque é muito comum no mundo das startups e das empresas, e quase perceber se ‘não estamos a crescer, estamos a morrer’. E é interessante tu dares essa perspectiva um pouco diferente de que … até mesmo para as próprias relações não é. Com certeza que iria ser diferente se vocês tivessem que partir a equipa em dois, o Canal 180 iria ter uma maneira de trabalhar completamente diferente. E é muito interessante tu olhares para esse lado interno, não só financeiro mas também das pessoas, de o que é que isso realmente iria ter impacto no nosso dia-a-dia, naquilo que é o nosso propósito. Acho que é incrível partilhares isso e estarem confortáveis com isso e compreenderem o impacto que isso tem. Acho que é muito interessante. 

(João) Eu há pouco perdi-me. Eu comecei por falar da questão do lançamento da altura da crise, e a verdade é que nós trabalhamos sempre milimetricamente…Nós conseguimos lançar com financiamento europeu. Às vezes as pessoas pensam que é dinheiro que cai do céu. Foi dinheiro que foi difícil de conquistar, foi aliás às 23:58 que submetemos e conseguimos, porque havia o projeto das Indústrias Criativas na Região do Norte. É um projeto que hoje, a dez anos, acho que foi extremamente importante para mapear e realmente trazer novos agentes para a região, que independentemente da escala do contributo direto que têm para o produto da nossa região, de facto era uma área fundamental de valorização de todas as atividades. Não é só preciso pensarmos numa Farfetch, mas a própria indústria de calçado, vestuário…se não tinha criado esta nova geração de pessoas do design, do vídeo, de outras áreas, da fotografia, do marketing, etc., não tínhamos para fazer o que é feito, e para mesmo que uma Farfetch conseguisse ter um centro de operações tão grande. Atuamos sempre a níveis muito diferentes, cada uma das organizações. Uma organização eminentemente criativa, precisa sempre de ter uma escala relativamente orgânica, ou pelo menos criar unidades orgânicas. 

(Marta) Consegues partilhar connosco alguns exemplos, alguns momentos mais marcantes sobre esse papel que tem a diversidade na vossa cultura de trabalho no Canal 180. A diversidade da vossa equipa.

(João) Primeiro acho que a própria fundação do Canal180 em momento de crise foi um statement. A televisão é uma provocação, mas é um statement a dizer que todas as formas de criação são importantes, todo o lado artístico, a arte é importante, é essencial. Portanto temos muito essa vocação e esse sentido mais puro artístico no nosso dia-a-dia e na cultura de trabalho que temos. Não querer que o processo molde demasiado as ideias. Isso tem sido um bocadinho a minha luta, o termos falado, o trabalhar em organizações numa escala menor permite que o processo não tome conta, tanto, do resultado final do que nós fazemos. E portanto o que eu tenho tentado desenhar mesmo em termos de produto comercial do que o 180 faz como estúdio e como produtor de conteúdos, é que mantenha uma certa independência, uma certa autoria no que faz. Alguns processos são mais simples, porque são editoriais. Às vezes temos de ir para um festival e fazer vídeos diários que saem no próprio dia, e a capacidade de os fazer implica um grande nível de confiança e de competência e de autonomia de todos envolvidos – da nossa equipa, do cliente, etc. E para mim, vindo de um meio, por exemplo da publicidade onde há processos de aprovação que podem demorar semanas ou meses. E eu acho que isto é um espaço de liberdade interessante, que tendo reunidas algumas competências e a consciência, uma leitura ampla do que estamos a fazer. Acho que é um exemplo de como é que conseguimos transformar o processo, no fundo que transforma também o nosso produto e que nos torna dentro do que fazemos, altamente competitivos, quase únicos nesta oferta de conteúdo editorial adaptado às necessidades comerciais de uma empresa. Aqui parece que estou um bocado a vender o nosso produto.

(risos)

(Luis) Mas é normal e é isso que faz a vossa equipa não é. No fundo acaba por ser essa a perspectiva.

(João) Eu posso dar aqui um exemplo alternativo. Nós temos uma experiência enorme na música, em conteúdos relacionados com música e festivais de música e então tínhamos um projeto que foi muito acarinhado em 2012, o Nós Primavera Sound veio para o Porto. Foi muito acarinhado pela cidade, pelas pessoas, por toda a gente, é um projeto muito especial. E nós sempre encontramos nele uma oportunidade de fazermos, de desafiarmos e fazermos coisas novas. E fizemos muito o vídeo line up, era um vídeo que ali no final do ano, início do ano, era anunciado o cartaz completo do Nós Primavera Sound que acontecia no início de Junho. E fizemos primeiro um muito experimental, quase como um estímulo para a nossa equipa. A seguir fizemos um, um bocadinho a pensar numa cerimónia até na Câmara Municipal do Porto, para o vídeo ser apresentado em conferência de imprensa. No terceiro ano fizemos uma coisa….’eh pá, costuma lá estar a malta toda nova, das escolas, aquele pessoal que gosta mesmo de música e está mesmo à espera de saber qual é o cartaz, portanto vamos fazer um vídeo para os fazer vibrar.’ E depois ‘Pá, e o que é que fazemos a seguir?’ E então foi muito giro conseguirmos convencer tanto o promotor do festival como o cliente, no caso a Nós, de como é que podemos fazer uma coisa radicalmente diferente. Estávamos ali num momento também interessante das tecnologias, o Instagram, o Facebook, havia os lives. O Instagram ainda não tinha stories, imaginem há quanto tempo foi ….

(Marta) (risos)

(João)… já parece no tempo dos nossos avós. Mas então decidimos trocar as voltas completamente daquilo, e por aquele vídeo tão esperado vir line up  no Facebook em live, mas era um vídeo de 45 minutos com o nosso amigo a caminhar desde a praia de Matosinhos…

(Luis) Eu lembro-me disso.

(João)…até à Baixa, e depois no fundo os nomes estavam a ser revelados no Instagram stories, e deixamos que organicamente as pessoas fossem partilhando e comunicando umas com as outras, usando este Facebook live, este momento, este evento completamente virtual. Isto já foi a alguns anos, mas tem esta narrativa interessante deste percurso, como podemos ir desenvolvendo, reinventando, inovando um produto ou um conteúdo que pode ser sempre reinventado. E trabalhando com todas as variáveis…as pessoas, o contexto, o formato, a duração, as plataformas digitais, os veículos, etc.

(Luis) Estava aqui a pensar que para estas coisas acontecerem, estando nas indústrias criativas, do que conheço…uma das partes importantes é não matar as ideias ao início, deixar que elas vão surgindo. Mas estava a pensar que isso às vezes isso implica nós irmos para esferas fora daquilo que é o normal, conseguirmos quebrar as barreiras. Mas ao mesmo tempo, quando estamos a trabalhar em equipas, nós às vezes queremos dar esse feedback e criar essas barreiras e dizer ‘Olha isso que estás a fazer está a ter um impacto negativo em mim.’ Como é que nesta perspectiva criativa se consegue dissociar por um lado, ser fácil que qualquer ideia seja possível, mas ao mesmo tempo que eu de vez em quando tenha que dar feedback como estás a trabalhar, ou o impacto que estás a ter nas pessoas à tua volta, como é que vocês gerem isso?

(João) Eu acho que sou uma pessoa muito direta, eu gosto muito de dar feedback. Eu detesto organizações e cultura “yes man”. Acho que tenho quase pânico de “o rei vai nu” estar cheio de certezas…E tenho outra coisa curiosa…um à parte, um parêntesis. Eu tenho muita dificuldade em tratar de uma forma diferente uma pessoa com 40 anos de uma pessoa com 20. Porque lá está….na parte das ideias e da atitude das pessoas, da vontade das pessoas, não me faz diferença nenhuma. O insight ou a ideia eu acho que não têm nada a ver com a experiência. Depois o montar e fazer com que ela consiga acontecer tem tudo a ver com experiência, com a diversidade de competências. Por tanto, eu acho que o feedback é muito importante, criar novos desafios. Lá está, este exemplo que vos estava a dar tem a ver com música, é um bocadinho sintomático…eu estava a dar este exemplo maior de ‘Ok, nós fazemos sempre um vídeo que apresenta o line up, como é que podemos fazer de uma forma diferente?’ E tentar perceber onde é que estão as oportunidades, discutir um bocadinho isso, dando feedback, ‘Eh pá, e isso já fizemos…e se fossemos para aqui, se brincássemos com aquilo?’ Ser um pouco exigente, estimular essa inovação, mas isso acontece muitas vezes. Outro exemplo clássico que neste caso é, os clientes todos pedem-nos ‘Eh pá queremos um vídeo de um minuto muito curtinho, muito poderoso, com o pessoal todo com braços no ar, tudo muito contente.’ E como nós fazemos muitos festivais, percebemos que ficam todos os vídeos iguais. Pode mudar lá o símbolo, o palco é um bocadinho diferente…e quando isso acontece, eu também sou logo o primeiro a dar um feedback, ou a dizer ‘Eh pá, se nos estão a pedir vídeos de um minuto, vamos fazer um documentário de 30 ou 40 minutos.’

(Luis) (risos) Vamos desafiar, não é!

(João) Acho que é essencial, não só porque estamos no negócio da criatividade, mas isto é mais profundo do que isso. Uma organização que depois se contenta em repetir a fórmula estará sempre condenada. Portanto o feedback, o nível de exigência e sobretudo também cultivar esta ideia de criticar…às vezes tenho esse problema…às vezes faço o empowerment de uma pessoa porque é uma pessoa mais sénior, e às vezes a pessoa leva demasiado à letra e … (risos) E ou começa a meter-se demais e depois nem tem tempo para fazer o seu trabalho, mas cultivo muito a ideia de feedback, gosto muito. Acho que também fui habituado na minha educação a poder discutir com os meus pais, com amigos dos meus pais, com os meus amigos. Acho que uma discussão é sempre uma coisa saudável. E acho que sou direto com as pessoas, tentando ter o afeto e o gosto, e adoro as pessoas com quem trabalho. Mais do que gostar delas, admiro-as pelo que elas fazem, pelo que elas gostam, pelo que elas conhecem, pelo que elas me dão a conhecer. E portanto, acho que uma cultura de exigência e feedback é essencial para uma organização. 

(Luis) E sentes que és tu que tens mais esse papel,ou foi uma coisa que por tu teres acabou por transparecer para toda a equipa e neste momento faz parte da vossa cultura como um todo?

(João) Oh pá, não sei! Eu sinto…não achando e não tendo uma perspectiva muito hierárquica das organizações, acho que claramente eu serei sempre um exemplo para a equipa. O que eu faço é sempre um exemplo a todos os níveis. Tenho essa responsabilidade acrescida. Ainda agora estava a tentar resolver uma coisa antes de almoço e tive dois nãos do meu motion designer e da minha editora…eu dizia ‘Eh pá, mas enviem…’ e eles: ‘Mas ainda não está feito, não vou partilhar as coisas sem estarem bem feitas’.

(Luis e Marta) (risos)

(João) Portanto…. eu tenho que aceitar. Eles, mais do que o cliente e do que eu, porque não está feito. Mas tenho a certeza que quando me enviarem está bem feito, e isso é inacreditavelmente mais importante, mais valioso.

(Marta) E pensando nesses momentos de colaboração, como é que vocês promovem esses momentos criativos, em que estão em conjunto, em que colaboram. E aqui até estou a pensar que pode ser a rotina do dia-a-dia ou alguns rituais ou espaços…se vocês vão para algum espaço, ou criaram algum espaço diferente no vosso escritório, também para promover estes momentos colaborativos?

(João) Bem, nem sei por onde começar. Mas é muito complexo, sobretudo depois deste ano de pandemia. Vou só pôr aqui dois cenários com que nós lidamos desde o início. O Canal180 tem tudo a ver com colaborações. Nós fazemos a nossa programação com uma rede de colaborações internacionais. Como devem imaginar, só se construiu por causa das ferramentas digitais que temos, nos skypes, agora os zooms, as chamadas ect. Isso é uma realidade, e é uma realidade daquilo que conseguimos fazer. Mas no ano passado durante a pandemia, e eu acho que quem tem que gerir uma empresa em recursos humanos, tem muitas dúvidas e ainda tem, de como conseguir gerar esse trabalho de equipa e da necessidade de um espaço físico ou não. Eu tinha pessoas a darem-me o feedback que ‘Ei, está a ser ótimo. Estou em casa, sinto que estou  a ser produtivo, sinto que está a ser muito melhor. É ótimo.’ E eu só pensava ‘Se nós estivéssemos sempre em casa, esta empresa não existia, esta equipa não existia, as pessoas não se tinham desenvolvido como se desenvolveram, não tinham tido as oportunidades de se conhecerem, de desenvolverem as ferramentas e as competências que têm.’ Por tanto, nem oito nem oitenta. Eu não sei muito bem onde estamos, porque não existindo a possibilidade física, nós conseguimos que as ferramentas nos compensem e criem novas possibilidades. Agora, não é possível gerir a energia e gerar as oportunidades de aprendizagem, de convívio  e de relação pessoal, sem a parte física.

(Marta) Vocês antes da pandemia, vocês tinham muito esses momentos de conjunto, de estar?

(João) No nosso caso, nós temos o trabalho de terreno. O trabalho de terreno é sempre uma oportunidade do bounding de equipas. Muitas vezes isso funcionava. Ou quando faziam viagens comigo, falarmos um bocadinho sobre o futuro do canal, o que estávamos a fazer, dos projetos, porque nem sempre toda a gente tem a visibilidade de tudo o que está a acontecer. Essa parte informal, eu gostava muito disso. Claro que depois ao crescer um pouco e ao termos muitos projetos em simultâneo, às vezes isso não acontece com tanta frequência. Mas eu gosto dessa partilha informal, de trabalhar, de estar em contacto com as pessoas, de me sentar ao lado de uma pessoa ver o trabalho que está a fazer, perguntar-lhe. Acho que isso é muito importante. E agora estou claramente num momento que o teletrabalho é um dado adquirido. Que as pessoas vão passar a trabalhar muito mais remotamente, e portanto estou a tratar de criar um novo espaço do 180 que não tem uma lógica tanto de escritório, mas uma lógica de uma espécie de hub, que aliás não é novidade nenhuma. É algo que já falávamos muito antes da pandemia. Ou seja, criar muito essa lógica de ser um sítio onde as pessoas querem estar, pelo menos alguns dias por semana. Um sítio agradável para reunirem, para partilharem ideias, ideias do que fizeram ontem, mas ideias de trabalho, um workshop, o kick off de um projeto, etc. Mas ser um espaço onde as pessoas estão e vão com vontade de estar, porque é também tudo uma questão da disponibilidade mental, da vontade das pessoas  para tirar partido desses momentos, ou estar oito horas num escritório e não haver uma interação. Por tanto é repensarmos um bocadinho como é que se criam essas oportunidades de colaboração, de interação. Acho que o teletrabalho e o trabalho remoto veio para ficar, até porque há pessoas que trabalham com os desktops e com máquinas que não é fácil andarem para trás e para a frente. Não é assim tão portátil quanto isso. Por tanto essas pessoas ou vão estar…pelo menos uma semana…ou maioritariamente a trabalhar em casa ou em trabalho no escritório. Mas vou deixar ao critério das pessoas, e criar os momentos… agora sim, com o trabalho remoto tem que se criar mais momentos físicos de encontro de partilha de kick off de projetos. Porque há uma questão de gestão da energia, e a gestão da energia é a gestão da motivação, da atenção, da disponibilidade mental. É isso que depois faz toda a diferença nos projetos. 

(Luis) Não indo ainda para esta perspectiva pós covid e remoto…porque traz uma coisa que nós ainda não sabemos relativamente a como é que nós sugerimos…embora já tenha passado quase dois anos, daqui a nada, desde que começamos a trabalhar remotamente, mas ainda não estamos habituados a gerir isto de trabalhar de casa, ou estar em casa e separar a nossa vida social. Mas mesmo sem pensar essa parte do teletrabalho, estava a imaginar que vocês são uma equipa pequena, e como qualquer equipa pequena é preciso fazer um pouco de tudo. Não é uma equipa grande a quem se pode pedir ajuda a mais alguém muito rapidamente. Como é que conseguem equilibrar essa necessidade que têm, dos muitos projetos que têm, a vida social das pessoas, o que é preciso entregar para os clientes? Como é que gerem esta perspectiva do equilíbrio entre a integração entre o trabalho e a vida pessoal?

(João) Eu acho que isso é uma dor, é um problema bastante grave, e tem-se falado de saúde mental muito no último ano. Esse equilíbrio trabalho vida, eu acho que há uma parte da pessoas, acho também de alguns reports que vou lendo, acho que há uma parte das pessoas que estão felizes com esta vida em casa e terem mais tempo para a família, sobretudo se já tiverem ali uma base, um núcleo que está em casa e que no fundo promove esse equilíbrio. E depois há de facto um desafio muito grande de pessoas que têm mais dificuldade em criar esse equilíbrio. Acho que tem muito a ver com esta situação individual. Acho que obviamente a empresa e os pedidos está tudo mais regulado…os pedidos dos clientes que chegam à hora de almoço. Ou seja, nós vivíamos muito dos rituais. À hora de almoço da uma hora até às duas e meia quase ninguém estava a trabalhar, depois a partir do final da tarde…e isso perdeu-se. Mesmo eu, às vezes, estou em casa, estou a trabalhar e nem paro para almoçar, e é uma estupidez porque depois sinto esse desgaste, esse cansaço adicional sem necessidade. Mas assim para responder mais diretamente à vossa pergunta. Eu tento respeitar. Também é verdade que eu tenho um ritmo acelerado e temos sempre muitos projetos, eu tenho consciência de não ser um grande exemplo nisto. Obviamente respeito totalmente. Como estava a dizer há pouco, quando as pessoas me dizem que é não, é não. E se não podem fazer eu aceito isso e tento reconhecer, tento que as pessoas percebam que elas próprias têm que pôr um travão. Não sei, não sei. Estou aqui a pensar… Em geral acho que existe realmente um desafio neste equilíbrio de trabalho e a vida pessoal, acho que tem de ser feito um esforço adicional por cada pessoa para definir os seus próprios limites. Acho que depois, temos por exemplo no nosso caso, uma dinâmica de trabalho e quando por exemplo temos serviço ao cliente, que ainda há uma grande desregulação. E aí eu acho que a nossa cultura, não só de trabalho, a nossa cultura nacional precisa de evoluir muito para desenvolver mais essa componente de respeito, confiança, organização que permita às pessoas fazer o switch on, switch off de uma forma mais tranquila. Muitas vezes eu posso nem estar a chatear uma pessoa a uma hora muito má, mas é deixar a pessoa em suspenso se aquilo está fechado ou não, se amanhã vai acordar e começar com o mesmo problema do dia anterior. E eu acho que isso tem uma grande falta de respeito pelos outros, a forma como tratamos os outros.

(Marta) João, pensando agora aqui no teu envolvimento muito próximo com o Canal 180 e neste teu projeto sonhado e criado, partilha connosco do que é que mais te orgulhas na cultura de trabalho do Canal180?

(João) Acho que é uma certa independência e uma atitude de exigência e de poder fazer e de  do it yourself.  Combina sempre uma disponibilidade para fazer e exigência na forma como se faz. E acho que é sobretudo isso. Pessoalmente, para mim, a razão do 180 é muito conciliar o meu lado mais da economia, trabalhei em gestão, com o outro lado que as pessoas me dão, mais artístico de muitas outras possibilidades. No dia-a-dia, acho que é isso que me alimenta de energia e de continuar a sonhar. Acho que na cultura 180 existe esta dimensão de sonhar e de fazer coisas, de muita coisa ser possível quando realmente dependemos de nós, de fazermos o que sabemos fazer, de querermos ser bons no que fazemos. Eu acho que existe isso. E dentro de um lado, não digo marginal, mas de nicho que o 180 trabalha. Gosta muito de descobrir festivais de música mais alternativos, gosta de questionar o status quo, gosta de procurar outros artistas que não são os mais mainstream, tentar sempre trazer outro ângulo, outra perspectiva, outra história. Eu acho que existe essa atitude que é o que para mim mais me traz felicidade no dia-a-dia. Que vem das pessoas e desse abrir de possibilidades que é ter essa liberdade de fazer, de acreditar. É uma coisa muito genérica, mas eu acho que tem muito de verdade, e que no 180…lá está, podíamos ser só uma produtora  a fazer uns vídeos giros de festivais, mas existe toda, por exemplo, a dimensão do trabalho editorial que nos desafiamos, que nós é que escolhemos os temas, que nós somos donos das nossas escolhas. E nesse sentido acho que o momento em que foi lançado o 180 também o definiu desta capacidade e vontade de fazer as coisas. Admito que tenho muito orgulho no 180 e nas pessoas do 180, e todas as pessoas que fizeram o 180. Tenho orgulho e também é o que me enche de felicidade.

(Marta) Obrigada João.

Estavas a falar e eu estava-me a lembrar ‘Sempre que um homem sonha o mundo pula e avança’ porque é mesmo esta ideia, é todos os dias…esta resiliência.

(João) Mas no meu caso é muito verdade….